quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Revisão pop



O ano de 2010 marcou no continente uma série de festejos pelo Bicentenário das independências de vários países. Argentina, México, Chile e Colômbia se libertaram da Coroa espanhola em 1810 e a efeméride foi amplamente comemorada não apenas nas ex-colônias, como na ex-metrópole, que guarda até hoje uma relação próxima e afetiva com seus rebentos.
Foi inaugurada essa semana na Casa de España de Madrid, um belo Centro Cultural dedicado às criações ibero-americanas, a exposição 200 Años Re-Diseñados, em que designers e artistas visuais argentinos ilustram suas versões desses 200 anos de história.
No entanto a melhor notícia é que esses trabalhos estão contidos no recém-lançado livro "AntiFichus" experiência editorial que se pretende um "anti-álbum de figurinhas", com mais de 100 artistas recriando esse passado à luz contemporânea, ou em "clave pop", como sugere um jornalista do Página 12. Já o Clarín definiu a experiência como uma forma pós-moderna da antropofagia: "es como meter dentro de una licuadora doscientos años de historia en imágenes y darle al botón más potente para que se mezcle todo y aparezcan nuevas visiones". O trabalho é válido tanto pelo lado de reflexão histórica quanto - e sobretudo - pela maneira original de se discutir o tema, já que a formalidade muitas vezes é a tônica nesse tipo de homenagem.
A originalidade não para no livro. Na exposição, haverá uma série de novidades: "fotocopiadoras que permitirán imprimir un DNI español o de algún país de América Latina, una Evita (Perón) que levita, mapas con información a gran tamaño, un altar santo nacional y popular, skates que reflejan 10 años de historia argentina, una rampa crisis/bonanza, audios y videos documentales".
Apesar de estarmos no Brasil, um evento como esse dificilmente chega até aqui. Uma pena.







sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Cartografia afetiva de territórios estranhos

O que mais me tocou no livro de Marcus Faustini, Guia Afetivo da Periferia, foi a sua universalidade. O discurso não é ressentido nem vitimizado, muito pelo contrario. É um livro que sai da periferia e vai para o mundo, direto, sem escalas, dialogando de maneira generosa com as esquinas por onde passa. Os pontos de contato e de identificação estão no plano do afetivo. Os pontos de estranhamento e da diferença estão na esfera da sedução. Identidade e alteridade se complementam, fazendo da trama desse quase-romance um espaço de (re)descobertas, de (re)conquistas e de sonhos resgatados, trazendo um pouco de poesia ao tratar de um assunto tão árido.

A maneira de apresentar suas memórias bateu direto no meu calcanhar de Aquiles e enxerguei mais uma teia de sentido em meu projeto de ressignificação da América Latina, esse território ainda tabu e desconhecido. América Latina é periferia. É a periferia global de um Brasil do centro. Deixou de ser quintal e se tornou laje, que no alto dos Andes, ainda incomoda. É o longe perto, território estranho, coberto por um verniz de clichés que reforça nosso conforto de boa vizinhança. O que nos chega hoje de lá, são estereótipos cravados pelo tempo, por mensagens em garrafas que já chegam anacrônicas.

Ainda hoje e apesar de hoje, a triangulação com o norte se faz necessária. Eles intermediam, descobrem, carimbam e reexportam; e nós compramos, contentes em “descobrir” algo legal vindo dos países vizinhos. Foi assim com o Buena Vista, com o tango eletrônico e com o cinema argentino. Quem dita as tendências daqui, são eles, não nós. Ainda não existe, para usar uma expressão da moda, uma estrada no “eixo sul-sul” para o trânsito de ideias, obras e afetividades.

Lembro que quando trabalhei com Paulo Cesar Saraceni, no finado Festival de Curtas de Paraty, em 2002, ele defendia, ao invés de mesas de debates sobre os filmes, “encontros afetivos nos bares”. A ideia é bonita e se encaixa nesse discurso. O que nos unirá não será o passado colonizado, católico e escravocrata. O que nos unirá será a afetividade.

Venho questionando a pertinência da expressão “América Latina”. Para mim, é um termo obsoleto, anacrônico e datado. Para nos repensarmos, temos que recriar esse conceito, que foi cravado no período histórico do pós-guerra, nos meandros da Guerra Fria. Período que exigia uma separação geo-política e semântica entre as duas Américas: a pobre e subdesenvolvida, e a do norte, rica, dona de todos os quintais. Ainda fará sentido falar hoje de "América Latina" quando 40 milhões de latinos estão nos Estados Unidos? Quando a cultura produzida pelos Estados Unidos está em todos os lares dos 26 países do continente, através da música, dos filmes, da internet, dos video-games? A cultura latino-americana hoje não é mais popular e mestiça. É pop e mixada. Hoje a América Latina é tão pop quanto a periferia descrita por Faustini. Ela também criou sua estética própria, também se expressa de maneira original, recriando linguagens, se conectando com o mundo, falando de si com encanto e sedução.

Por isso, não faz mais sentido esse imenso guarda-chuva retrô chamado “América Latina”. Temos que nos rebatizar para inaugurar esse século frenético, nos reposicionando dentro e fora desse pedaço de chão. Cada vez encontro mais pessoas com interesse em explorar essa nova cara da América, mas todas se queixam da dificuldade, da escassez e das barreiras na estrada. Isso já é um ótimo sinal, pois pás existem para cavar as barreiras, recriando os fios de través das antigas teias. Só sentimos afeto por aquilo que conhecemos. Isso serve para a periferia de Faustini ou para as longínquas criações chilangas. E a arte – e hoje, as indústrias criativas – são sem dúvida o melhor passaporte para aproximar os mundos e se deixar seduzir por aquilo que você nem imaginava que existia. Essa é a graça de poder viver num mundo globalizado.