A maneira de apresentar suas memórias bateu direto no meu calcanhar de Aquiles e enxerguei mais uma teia de sentido em meu projeto de ressignificação da América Latina, esse território ainda tabu e desconhecido. América Latina é periferia. É a periferia global de um Brasil do centro. Deixou de ser quintal e se tornou laje, que no alto dos Andes, ainda incomoda. É o longe perto, território estranho, coberto por um verniz de clichés que reforça nosso conforto de boa vizinhança. O que nos chega hoje de lá, são estereótipos cravados pelo tempo, por mensagens em garrafas que já chegam anacrônicas.
Ainda hoje e apesar de hoje, a triangulação com o norte se faz necessária. Eles intermediam, descobrem, carimbam e reexportam; e nós compramos, contentes em “descobrir” algo legal vindo dos países vizinhos. Foi assim com o Buena Vista, com o tango eletrônico e com o cinema argentino. Quem dita as tendências daqui, são eles, não nós. Ainda não existe, para usar uma expressão da moda, uma estrada no “eixo sul-sul” para o trânsito de ideias, obras e afetividades.
Lembro que quando trabalhei com Paulo Cesar Saraceni, no finado Festival de Curtas de Paraty, em 2002, ele defendia, ao invés de mesas de debates sobre os filmes, “encontros afetivos nos bares”. A ideia é bonita e se encaixa nesse discurso. O que nos unirá não será o passado colonizado, católico e escravocrata. O que nos unirá será a afetividade.
Venho questionando a pertinência da expressão “América Latina”. Para mim, é um termo obsoleto, anacrônico e datado. Para nos repensarmos, temos que recriar esse conceito, que foi cravado no período histórico do pós-guerra, nos meandros da Guerra Fria. Período que exigia uma separação geo-política e semântica entre as duas Américas: a pobre e subdesenvolvida, e a do norte, rica, dona de todos os quintais. Ainda fará sentido falar hoje de "América Latina" quando 40 milhões de latinos estão nos Estados Unidos? Quando a cultura produzida pelos Estados Unidos está em todos os lares dos 26 países do continente, através da música, dos filmes, da internet, dos video-games? A cultura latino-americana hoje não é mais popular e mestiça. É pop e mixada. Hoje a América Latina é tão pop quanto a periferia descrita por Faustini. Ela também criou sua estética própria, também se expressa de maneira original, recriando linguagens, se conectando com o mundo, falando de si com encanto e sedução.
Por isso, não faz mais sentido esse imenso guarda-chuva retrô chamado “América Latina”. Temos que nos rebatizar para inaugurar esse século frenético, nos reposicionando dentro e fora desse pedaço de chão. Cada vez encontro mais pessoas com interesse em explorar essa nova cara da América, mas todas se queixam da dificuldade, da escassez e das barreiras na estrada. Isso já é um ótimo sinal, pois pás existem para cavar as barreiras, recriando os fios de través das antigas teias. Só sentimos afeto por aquilo que conhecemos. Isso serve para a periferia de Faustini ou para as longínquas criações chilangas. E a arte – e hoje, as indústrias criativas – são sem dúvida o melhor passaporte para aproximar os mundos e se deixar seduzir por aquilo que você nem imaginava que existia. Essa é a graça de poder viver num mundo globalizado.
Belo post. Bem vinda de volta!
ResponderExcluirAcho que a resignificação será, na verdade, uma simples (apesar de demorada) redescoberta. Estamos no caminho. Inclusive de perceber, acho eu, que estar na periferia (sem que isso signifique obedecer quem está no centro) é virtualmente mais legal ;)
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