quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

La Teta Asustada

Me encheu de alegria a notícia de que o novo filme da cineasta peruana Claudia Llosa está selecionado para a competição oficial de Berlim, que começa no próximo dia 5. Com o inusitado título de La Teta Asustada, o filme se encontra mais uma vez na fronteira entre a realidade e a ficção, como ela já fizera com seu filme anterior, Madeinusa.

O que me encanta na obra de Claudia que, aliás, foi a pessoa que me apresentou ao conceito de "cultura chicha", é a maneira como lida com a tradição, uma tradição recriada, inventada, ficcional e a relaciona com questões contemporâneas bastante complexas. Em Madeinusa, por exemplo, a história se passa num vilarejo andino bastante isolado que tem como tradição uma comemoração muito peculiar da Semana Santa: se Jesus morreu na cruz na sexta-feira e ressuscitou no domingo, então entre sexta e domingo Deus está morto, e portanto o pecado não existe. Diante dessa lógica evidente, todo o povoado se prepara para fazer o proibido.

Acompanhei Claudia quando veio apresentar o filme no Festival do Rio 2006 e a primeira pergunta que pulula ao fim da sessão é sempre a mesma: "isso é verdade?". O jogo que ela consegue armar tão bem nos faz questionar uma série de paradigmas, no melhor estilo "a invenção das tradições", de Hobsbawn. 

Nesse último filme, o pano de fundo é o Peru do Sendero Luminoso, assustado pela violência cotidiana do terrorismo. A própria Claudia explica:  
“La teta asustada no es una creencia, es una enfermedad, una antigua enfermedad. Se contagia a través de la leche materna de las mujeres que fueron violadas durante la gestación y la lactancia. Sus hijos se infectarán de manera irremediable de ese silencioso terror. Fausta (Magaly Solier) lo tiene. Ella sufre de un miedo atávico que la invade por completo. Y más, guarda un secreto que no quiere ni puede revelar. Pero debe cumplir una promesa: llevar a su madre a su pueblo natal. Y para hacerlo debe encontrar la salida del laberinto que está dentro y fuera de ella”

Essa reinvenção das tradições faz hoje de Claudia Llosa uma figura chave nesse processo de resignificação do continente. Tomara que saia de Berlim com um merecido prêmio.

Resenha

E teve ainda uma resenha interessante do historiador paulista Antonio Pedro Tota, que foi uma referência teórica para meu trabalho, sobretudo com o ótimo livro Imperialismo Sedutor. Aqui ele situa o movimento pan-americanista de uma forma bem completa, citando inclusive o movimento All Mexico. 


ESTADO DE SÃO PAULO

CADERNO2 

25/01/2009 


 Intelectualidade a serviço do espírito pan-americanista 

 Movimento se fortaleceu quando EUA se sentiram ameaçados pelos nazistas

 

Antonio Pedro Tota 

ESPECIAL PARA O ESTADO


É estimulante para um velho professor de história saber que jovens pesquisadores podem produzir algo novo de temas aparentemente batidos.  A carioca Ana Luiza Beraba, em América Aracnídea, trabalha com o desconhecido suplemento Pensamento da América do jornal A Manhã, órgão do Estado Novo.  O suplemento foi a fórmula da intelligentsia brasileira para juntar os fios das teias das Américas.  Ana Luiza fez isso sem cair na fácil armadilha do nazismo/fascismo/totalitarismo para classificar o governo Vargas de 1937 a 1945. 

Muitos optaram apressadamente pela fórmula acima depois de tomar conhecimento do discurso de Vargas de 1940, quando ele deu a entender que o futuro pertencia aos povos vigorosos aptos à vida....  O discurso de Getúlio parece ter sido interpretado como um manifesto nazi-fascista.  E reciclado em 1944, por K.  Loewestein num livro chamado Brazil Under Vargas e usado como padrão, até hoje, para entender (ou não entender) o Estado Novo.  Loewestein empregou o conceito Gleischschautung para identificar a política do DIP.  Nada mais fora do lugar.  Significa nivelamento planejamento, organização.  Impossível no Brasil de Vargas.  Impossível essa hegemonia na América Latina, diria Richard Morse. Americanismo, pan-americanismo, relações entre intelectuais e relações culturais entre as Américas.  Difícil não cair nos jargões ideologizados.  Ana safou-se, mas teve de usar o politicamente correto estadunidense (por sorte aspeado) para designar os nascidos nos EUA. 

Logo depois da independência, os pais da pátria dos Estados Unidos tinham dúvidas.  Eram um país ou 13 países? Estados Unidos da América.  Sabemos que a palavra América foi apropriada pelos EUA para designar um país sem nome. América veio a calhar.  Os vizinhos continentais, lutando contra a Espanha ou Portugal e depois entre si, não prestaram atenção e deixaram que o nome virasse marca registrada do irmão maior. Por isso, talvez, os EUA pensaram numa impossível união das Américas num pan (totalidade).  Isso estava na cabeça de Simon Bolívar em 1826, no chamado Congresso do Panamá.  Só para nações hispano-americanas.  Não deu certo.  Bolívar, perto da morte, achava que a América Latina era um caos primevo.  A união das Américas foi um sonho pouco atraente. 

Essa cooperação interamericana seria impossível na maior parte do século 19.  Na época, os americanos sabiam que não tinham muito a ver com o restante da América.  A verdadeira América falava inglês, era branca e protestante.  Podia ter imperfeições.  Um irlandês católico ou um alemão católico.  Os africanos escravos não entravam na contabilidade racista civilizatória. Os “estadunidenses começaram a olhar com cobiça para o Sul quando da guerra com o México no fim dos anos 1840.  Vencido o México, cresceu o movimento conhecido com All Mexico.  Por que não anexar todo o México em vez de ficar só com o Texas, Novo México, Nevada, Colorado (parte) e Califórnia?  A grita foi geral.  Com o território, diziam os oponentes ao plano expansionista, viria gente pouco confiável.  Mestiços, espanhóis, católicos, corruptos, lúbricos.  Um alto funcionário americano, ou estadunidense, resumiu de forma mais calvinista a imagem que se fazia do México e, por extensão, da América Latina: ...enquanto em nossas cidades e municípios você ouve o zumbido ativo do trabalho incessante e o assobio estridente da máquina a vapor, lá você não ouve nada além do tambor e pífano; enquanto nós fazíamos ferrovias, eles faziam revoluções.  O movimento Todo México foi esquecido. Em 1890, os EUA insistiram na aproximação amigável e promoveram uma grande reunião em Washington com a participação da maioria dos países latino-americanos.  Nasceu a Pan-American Union/União Pan-Americana/Union Pan-Americana com todas as publicações em três línguas.  A guerra Hispano-Americana de 1898 arrefeceu os ânimos.  

O encontro da União Pan-Americana, no México, em 1901 foi fria e antiamericana, ou melhor, anti-ianque. 

Nos anos que precederam a 2ª Guerra, o pan-americanismo reapareceu com mais força.  

O continente sentia-se ameaçado pelo crescente germanismo renascido no nazismo da Nova Alemanha.  O pan-americanismo ficou mais forte depois de dezembro de 1941, quando os japoneses arrasaram Pearl Harbor.  Poucos meses depois, Orson Welles estava no Brasil para soldar a amizade com as outras Américas

Em 14 de abril de 1942, Orson fez um programa de rádio no Rio de Janeiro transmitido para os EUA.  Era o Pan-American Day, não muito lembrado em nosso calendário oficial.  O entrevistado foi Oswaldo Aranha, ministro de Relações Exteriores de Vargas.  Orson apresentou o gaúcho comparando-o ao valente caubói do Texas.  E Aranha falou em bom inglês, com sotaque, enaltecendo a amizade das Américas.  Quatro dias depois, Orson reforçou o pan-americanismo: comandou um show no Cassino da Urca para comemorar o aniversário de Vargas.  Era o Dia do Presidente, uma versão do Presidents Day transportado para cá pelo Office of the Coordinator of Inter American Affairs, de Nelson Rockefeller. 

Terminada a guerra e deposto Vargas, o Pan-American Day sumiu.  O aniversário de Vargas ficou em família.  E o pan-americanismo só sobreviveu no slogan da desaparecida Pan-American Airways  ligando as Américas.  

 

Antonio Pedro Tota, historiador e professor da 

PUC-SP, é autor de O Imperialismo Sedutor

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Repercussão

Ontei saiu uma matéria bem legal no caderno Cultura do Estadão sobre o América Aracnídea. Como muita gente no Rio não lê o Estado, reproduzo aqui a íntegra da matéria. Os que tiverem Facebook, podem ver a imagem clicando aqui:

ESTADO DE SÃO PAULO

CADERNO 2 

25/01/2009 

BRASIL 

 

E UM DIA O BRASIL QUIS SE TORNAR UMA ARANHA

América Aracnídea, de Ana Luiza Beraba, aborda dificuldades de unir o continente

por Francisco Quinteiro Pires

 

ESTADO BRASILEIRO, NOS 1940, APOSTOU NO PAN-AMERICANISMO PARA VIRAR POTÊNCIA 

 

Quando certa manhã Getúlio Vargas acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.  GV transformara-se numa aranha.  Não é que de repente ele fora incluído num romance à la Franz Kafka.  Essa metamorfose, nada ficcional, está registrada na História.  Para ser mais preciso, Getúlio Vargas era o centro nervoso de uma aranha chamada Brasil que, dividindo espaço na mesma teia com outra 

aranha, os EUA, tecia os fios culturais do pan-americanismo. 

Os sonhos intranquilos deviam-se à 2ª Guerra Mundial (1939-1945).  Depois de certo período de ambiguidade política, o governo brasileiro decidiu embarcar de vez no barco dos Aliados na luta contra o Eixo.  Se durante a 2ª Guerra se iniciou o processo de americanização do Brasil, essa investida político-cultural não se deu sozinha.  A fim de ser uma potência regional, o Brasil, a seu modo, contra-atacou. O ministro das Relações Exteriores Oswaldo Aranha, contrário aos nazistas e fortalecido no governo no fim dos anos 1930, jogava as suas teias diplomáticas.  O Brasil teve uma atitude internacionalista com o continente americano que em nada afetou o conhecido nacionalismo do Estado Novo (1937-1945).  Valia a ideia da autodeterminação dos povos no jogo com os outros países, sobretudo os EUA, promotores da Política da Boa Vizinhança. Daí a pertinência da metáfora de que Brasil e EUA seriam as duas âncoras (aranhas) do continente, usada por Cassiano Ricardo, dirigente do A Manhã, 

jornal oficial do Estado Novo criado em 1941 e extinto em 1948.  Nele circulou o Pensamento da América, suplemento dominical de cultura que promoveu a integração intelectual dos países americanos.  Suas páginas abrigaram o espírito pan-americano, que não anulava a diversidade nacional.  O modernista Cassiano Ricardo, autor de Martim Cererê, dizia que 

há vinte e uma formas de ser americano, e não uma apenas

Formavam a América as seguintes repúblicas independentes: Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Equador,Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador, Guatemala, México, Estados Unidos, Canadá, Cuba e República Dominicana.  Haiti, vez por outra, é citado.  Não se distinguia América Latina de América Anglo-Saxônica. 

A circulação de Pensamento da América, fato pouco conhecido, é o tema de América Aracnídea  Teias Culturais Interamericanas (Civilização Brasileira, 224 págs., R$ 39), da historiadora Ana Luiza Beraba, de 29 anos.  Pensamento da América, além de falar da relação do Brasil com outros povos, revela a condução ambígua da política por Vargas. Ele era muito sagaz, sabia jogar, como prova a decisão tardia entre apoiar EUA ou Alemanha, diz.  O então presidente mostrava sua essência enigmática, em razão da qual pode ser 

chamado de pai dos pobres e mãe dos ricos. 

Criado pelo diplomata Rui Ribeiro Couto, Pensamento da América tinha relações estreitas com o Itamaraty e os intelectuais modernistas. O motor do suplemento era diplomático e a finalidade, política. Ele estava a serviço da ideologia oficial.  Ana Luiza refuta a incoerência entre o projeto nacionalista de Vargas e o pan-americanismo do suplemento. A questão da 

terra é extremamente importante para a publicação, acreditava-se que para defender o Brasil era preciso primeiro saber o que não é o Brasil, diz. “A delimitação do território era fundamental, por isso a presença forte da literatura regionalista no suplemento, completa. 

A atuação de modernistas não é casual.  O modernismo tentou redescobrir o País e sua identidade.  O governo escolheu como diretor de redação Cassiano Ricardo, modernista conservador, ícone do grupo Verde-Amarelo.  O regionalismo sintetizou o conceito de brasilidade, pois unia o regional ao nacional, origem do elo entre modernistas e Estado Novo. 

Ana Luiza afirma que Pensamento da América refazia a imagem do continente para os brasileiros, ao mesmo tempo que o governo os bombardeava com a ideia de um novo país.  As referências não estariam mais na Europa. Ao contrário do que se pode concluir, o discurso varguista era muito coerente, afirma.  

Por isso não deveria causar espécie a comparação de Cassiano Ricardo entre Getúlio Vargas, Simon Bolívar e James Monroe, os mentores do americanismo. Apesar do interesse político, o que estava em pauta, segundo Ana Luiza, era a divulgação dos valores intelectuais dos povos do continente. À semelhança do 3º Reich e dos EUA de Franklin D.  Roosevelt, o Estado varguista valia-se da cultura como arma política  secretando ideias como uma picada de inseto que não arde. 

Pensamento da América teve três fases durante as quais o conteúdo se diversificou.  Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Dante Milano, Gilberto Freyre e Cecília Meireles, entre outros, compunham a redação do A Manhã, de circulação nacional.  Impressiona, segundo Ana Luiza, a modernidade da paginação que privilegiava o material iconográfico, como mapas e fotografias.  Os leitores podiam, por exemplo, apreciar a reprodução dos últimos trabalhos do pintor mexicano Diego Rivera. 

A primeira fase, sob a direção do poeta e diplomata Ribeiro Couto, vai de agosto de 1941 a fevereiro de 1943  Manuel Bandeira assumiu o comando durante 6 meses.  Deu-se um turbilhão de propostas e descobertas.  A segunda  de março de 1943 a novembro de 1945  é a fase da maturidade e da fertilidade.  O conteúdo fica mais plural com Renato Almeida, folclorista e musicólogo.  A ênfase, antes, era dada à literatura.  Música, cinema, artes plásticas, geografia, urbanismo encontraram guarida.  A última é a fase da agonia, do começo de 1946 a fevereiro de 1948.  Temas gerais são contemplados e o nome do diretor desaparece do expediente. 

Durante esses 7 anos de existência, vários artistas americanos (não confundir, neste caso, americano com norte-americano) publicaram textos, entre eles Gabriela Mistral, Walt Whitman, Alfonso Reyes, Pablo Neruda, Alfonsina Storni, Jorge Luis Borges, Fernando Ortiz, William Carlos William, Aaron Copland.  O leque de colaboradores brasileiros era abrangente  Oswaldo Goeldi, Murilo Mendes, Brito Broca, Lêdo Ivo, Ascendino Leite, Marques Rebelo, Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto, etc. 

Ana Luiza pesquisou a coleção do suplemento, quase completa e pertencente a Plínio Doyle, na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio.  Sem receber bolsa, ela usou o tempo livre para ler as 1.128 páginas do suplemento.  O trabalho demorou 3 anos.  Detalhe importante: Ana Luiza Beraba foi desaconselhada a fazer a pesquisa.  Diziam-lhe ser irrelevante o contato entre Brasil e as nações vizinhas.  Mas conversas com pessoas do quilate do argentino Néstor 

García Canclini foram incentivadoras.  Depois de virar monografia de graduação da Faculdade de História da UFRJ, o trabalho de Ana Luiza foi ao livro, elogiado pelo uruguaio Eduardo Galeano, autor de As Veias Abertas da América Latina. 

Ana Luiza estudou cinema na EICTV, em Cuba.  Desde 2003 integra a coordenação 

internacional do Festival do Rio.  Está concluindo a pós-graduação em gestão cultural na FGV-Rio.  Nas pesquisas para a pós  entrevistas com 300 espectadores do Festival do Rio de 2007 , ela comprovou mais uma vez o desconhecimento em relação ao continente.  Quando os pesquisados respondem quais são os cineastas latino-americanos que conhecem, citam Walter Salles (em primeiro lugar) e Pedro Almodóvar (em segundo).  Mas Almodóvar é 

espanhol.  E, quando pensam em cinema latino-americano, lembram-se de miséria e violência, sol e carnaval. A cultura dos países vizinhos nos é alheia, o preconceito ainda existe, ela diz. 

Pensamento da América durou mais do que deveria (até 1948), pois ficara sem propósito político após Getúlio Vargas ter saído da Presidência.  Isso revelaria “o prestígio do suplemento.  De 1945 em diante, artigos de interesse geral, sem identidade própria, ganharam espaço.  O fim do projeto confirmou ser necessário o descobrimento real da América, apesar de Cristóvão Colombo ter chegado às ilhas das Caraíbas (Antilhas) em 1492. Não conhecemos nem sabemos lidar com o nosso próprio talento até hoje. Essa 

necessidade soa mais fantástica do que o fato de o Brasil ter se transformado, um dia, numa aranha.


Quem escreveu no Pensamento da América

 

CASSIANO RICARDO: Aparecendo, portanto, num instante ímpar de nossa história  quando corpo e a alma do autêntico Brasil emergem de um processo revolucionário que nos restituiu os veios mais secretos de nossa originalidade como povo e como Estado, o objetivo principal de A Manhã é trabalhar por esta obra de confraternização brasileira e espelhar os fatos deste instante emotivo e criador.  O seu rumo está, assim, definido: ela pretende ser o pensamento brasileiro em função dos nossos ideais de nacionalidade. (Texto do escritor modernista sobre a linha editorial do 

suplemento, de agosto de 1941)

RAUL BOPP: É a supremacia técnica da América que vai ditar a resposta.  Ela retomou ritmos de produção tirânica.  O gênio de aço acendeu as fornalhas.  Cresceram as fábricas como monstros achatados, mastigando noite e dia fatias de ferro (...) É a marcha das máquinas a marcha da vitória.  Chegaremos, certamente, um dia, por highways, de Los Angeles ao Chile, Rio de Janeiro ou Buenos Aires.  Mas os autos rodarão em pneumáticos de borracha da Amazônia, onde ela é nativa  seja de procedência peruana, venezuelana, boliviana ou brasileira –, e não mais das Índias de além-Pacífico.  Com o desenvolvimento 

da aviação veremos, em futuro próximo, esquadrilhas do ar riscando o céu no afã de reunir distâncias, vencendo a territorialidade e o isolamento.  Por conseguinte, farão de melhor modo a aproximação dos povos, em uma solidariedade e equilíbrio de interesses. (Texto do escritor modernista sobre o espírito progressista do pan-americanismo, de junho de 1945)

RENATO ALMEIDA: (Rui Ribeiro Couto) é um cavaleiro da cooperação intelectual.  Por toda parte onde o tem levado o destino andejo de diplomata, é sempre um elemento fecundo de compreensão e consegue estabelecer logo contatos espirituais, que desenvolve, tanto para nos tornar conhecidos como para nos fazer conhecer as terras por onde anda e as gentes que o acolhem.” (Texto do folclorista quando sucedeu a Rui Ribeiro Couto na direção do 

suplemento, de abril de 1943)

GABRIELA MISTRAL: Árvore absurda, partida em duas frondes que, separadas no tronco por somente cinco polegadas, se repudiam e dividem no alto por um rasgão e um vazio de metros.  O tronco é um, a seiva é uma, e a espécie e o gênero também, mas a árvore teve o louco humor de não ver as duas frondes.  De ramo a ramo, não corre nenhuma palpitação emocional comum, e sua única raiz parece um mito. (Texto da poeta chilena sobre o desconhecimento mútuo dos países americanos, de setembro de 1945) 

CECÍLIA MEIRELES: Entre marquesa empoada e clown lírico  mal a pude ver num momento movediço de hotel.  Tinha nos olhos e no riso um fulgor igual: a ironia, essa indulgência dos tristes; a poesia, essa tristeza dos bons.  Uma prematura cabeleira toda de lua, que fazia Gabriela Mistral dizer-lhe, como a um bichinho meigo: ratinho branco... Um dia, em 1938, o Uruguai convidou essas duas altas vozes  a argentina e a chilena  a se unirem à de sua Juana de Ibarbourou, para juntas explicarem o mistério de seu lirismo.  Foi 

uma festa inesquecível.  (... ) Estava necessitada e cansada.  Ponho-me a reler seus versos: tão desejosos de encontro, de repercussão.  Nascera para o mais triste e mais irresistível dos verbos: dar-se.  Que é um verbo curto, irregular, e só ironicamente reflexivo. (Texto da escritora carioca sobre o suicídio,aos 46 anos, da poeta argentina Alfonsina Storni, de fevereiro de 1948)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Made in Peru

Adorei o comentário feito por meu amigo Bernardo no post sobre a Bienal Ibero-Americana de Design pois ele abre para um tema que estava querendo abordar aqui. Ele sugere um artigo publicado no Los Angeles Times sobre o chef peruano Gastón Acurio. E me pergunta se a culinária não seria também um meio para se conhecer esses outros lados da América.

Sem dúvida que sim, e há muito venho me interessando por algumas áreas que ficam na fronteira entre criação e indústria, arte e comércio. Na verdade, é grande o escopo do que se convencionou chamar das "indústrias criativas". E a gastronomia, assim como o design e a moda, fazem parte desses meus centros de interesse que gostaria de tratar aqui.

Por ora, queria me limitar a alguns comentários sobre o Gastón Acurio, renomado chef peruano, que difundiu pelo mundo a ceviche e possui restaurantes em Lima, Madrid, San Francisco, México, Bogotá, Caracas, Panamá, Quito, Santiago e Buenos Aires.

Conheci o nome dele meio por acaso há pouco tempo quando estava pesquisando sobre o tema "imagem-país" para meu trabalho final do MBA em gestão cultural da FGV-RJ. Cheguei a um discurso que ele fez em 2006 onde coloca com muita pertinência alguns conceitos com os quais me identifico. O artigo dos Los Angeles Times reafirmou o importante lugar que ele ocupa nessa resignificação do continente. 

Acho que vale reproduzir aqui um trecho do tal discurso, que pode ser lido na íntegra aqui:

"Los ciudadanos de todos los países industrializados han entendido que la gran riqueza no está solo en la elaboración de productos genéricos, sino en la creación de marcas cuyo reconocimiento en términos de calidad les permite expandirse por todo el mundo. Por ello, Suiza compró cacao y oro, y sus ciudadanos los convirtieron en chocolates Nestlé y en relojes Rolex; Japón y Corea compraron minerales y su gente los convirtió en Toyota, Nissan o Samsung; y en épocas aún más recientes, el norteamerican
o Howard Shultz compró café por el mundo y se lo devolvió convertido en Starbucks.

Pues bien, la gastronomía peruana hasta hace muy poco ha sido justamente eso: un gran recurso. [...] Sin embargo, nuestra gastronomía no es afortunadament
e solo un gran recurso, sino una suma de cocinas y conceptos que, en muchos casos, aún esconden un gran potencial. [...] Detrás de nuestra entrañable cocina criolla, de nuestras pollerías, de los chifitas de barrio, de la cocina novoandina, de las picanterías arequipeñas, de los anticuchos, de los sánguches, de la cocina nikkei o de las cebicherias, existen oportunidades inmensas de crear conceptos que trasciendan su ámbito local para convertirse en productos, productos peruanos de exportación que no solo aspiren a codearse con conceptos ya instalados globalmente como pizzerías, hamburgueserías, sushi bares o taquerías mejicanas, sino que, además, generen al Perú enormes beneficios tanto económicos como de marca país."
 (grifos meus)

Esse discurso vem de encontro com o que foi amplamente discutido na BID, nos âmbitos de design e moda: hoje quando falamos em algum produto "made in Japan" ou "made in German" está implícito no termo informações sobre o produto: se é de boa ou má qualidade, se o forte é o design ou a tecnologia, ou ainda os preços baixos como no caso do "made in China". Mas quando se fala de algo "made in Peru" ou "made in Guatemala", que informação recebemos? Praticamente nenhuma, ao menos aqui no Brasil. Não sabemos avaliar se um artefato made in Panamá é melhor ou pior do que um made in Bolívia, por exemplo. Ou estou errada? O que esses nomes depreendem como informação? Tirando os vinhos argentinos e chilenos, que já se posicionaram muito bem por aqui, e um ou outro produto típico, em geral os outros países carregam uma carga bastante pejorativa - "novelão mexicano", "whisky paraguaio"!!! E vários outros não remetem a absolutamente nada...

Vejo que há no Peru uma "movida" grande em relação a essas questões. Além do trabalho do Gastón na culinária, na moda e no design também há iniciativas parecidas, como por exemplo o trabalho do pessoal da Peru Moderno, uma grife de roupa urbana criada pelas estilistas Ena Andrade e Chiara Macchiavello, que tem como pano de fundo a chamada cultura chicha, conceito importante para se entender o Peru atual. A cultura chicha é um movimento de "fusión" entre o popular e o erudito, é a releitura urbana das culturas dos andes, da costa, das ruas promovendo um diálogo inédito no país e evidenciando o que eles chamam de "realismo estético andino". 

São iniciativas como essas e tantas outras que poderão alterar pouco a pouco a visão estreita e reducionista que muitos temos desses países. Não é a toa que os restaurantes do Gastón ainda não chegaram no Brasil! Tomara que em breve isso aconteça e que essa "árvore absurda, partida em duas frondes", como tão bem definiu Gabriela Mistral as duas Américas, ganhe cada vez mais galhos entrecruzados.