quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Revisão pop



O ano de 2010 marcou no continente uma série de festejos pelo Bicentenário das independências de vários países. Argentina, México, Chile e Colômbia se libertaram da Coroa espanhola em 1810 e a efeméride foi amplamente comemorada não apenas nas ex-colônias, como na ex-metrópole, que guarda até hoje uma relação próxima e afetiva com seus rebentos.
Foi inaugurada essa semana na Casa de España de Madrid, um belo Centro Cultural dedicado às criações ibero-americanas, a exposição 200 Años Re-Diseñados, em que designers e artistas visuais argentinos ilustram suas versões desses 200 anos de história.
No entanto a melhor notícia é que esses trabalhos estão contidos no recém-lançado livro "AntiFichus" experiência editorial que se pretende um "anti-álbum de figurinhas", com mais de 100 artistas recriando esse passado à luz contemporânea, ou em "clave pop", como sugere um jornalista do Página 12. Já o Clarín definiu a experiência como uma forma pós-moderna da antropofagia: "es como meter dentro de una licuadora doscientos años de historia en imágenes y darle al botón más potente para que se mezcle todo y aparezcan nuevas visiones". O trabalho é válido tanto pelo lado de reflexão histórica quanto - e sobretudo - pela maneira original de se discutir o tema, já que a formalidade muitas vezes é a tônica nesse tipo de homenagem.
A originalidade não para no livro. Na exposição, haverá uma série de novidades: "fotocopiadoras que permitirán imprimir un DNI español o de algún país de América Latina, una Evita (Perón) que levita, mapas con información a gran tamaño, un altar santo nacional y popular, skates que reflejan 10 años de historia argentina, una rampa crisis/bonanza, audios y videos documentales".
Apesar de estarmos no Brasil, um evento como esse dificilmente chega até aqui. Uma pena.







sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Cartografia afetiva de territórios estranhos

O que mais me tocou no livro de Marcus Faustini, Guia Afetivo da Periferia, foi a sua universalidade. O discurso não é ressentido nem vitimizado, muito pelo contrario. É um livro que sai da periferia e vai para o mundo, direto, sem escalas, dialogando de maneira generosa com as esquinas por onde passa. Os pontos de contato e de identificação estão no plano do afetivo. Os pontos de estranhamento e da diferença estão na esfera da sedução. Identidade e alteridade se complementam, fazendo da trama desse quase-romance um espaço de (re)descobertas, de (re)conquistas e de sonhos resgatados, trazendo um pouco de poesia ao tratar de um assunto tão árido.

A maneira de apresentar suas memórias bateu direto no meu calcanhar de Aquiles e enxerguei mais uma teia de sentido em meu projeto de ressignificação da América Latina, esse território ainda tabu e desconhecido. América Latina é periferia. É a periferia global de um Brasil do centro. Deixou de ser quintal e se tornou laje, que no alto dos Andes, ainda incomoda. É o longe perto, território estranho, coberto por um verniz de clichés que reforça nosso conforto de boa vizinhança. O que nos chega hoje de lá, são estereótipos cravados pelo tempo, por mensagens em garrafas que já chegam anacrônicas.

Ainda hoje e apesar de hoje, a triangulação com o norte se faz necessária. Eles intermediam, descobrem, carimbam e reexportam; e nós compramos, contentes em “descobrir” algo legal vindo dos países vizinhos. Foi assim com o Buena Vista, com o tango eletrônico e com o cinema argentino. Quem dita as tendências daqui, são eles, não nós. Ainda não existe, para usar uma expressão da moda, uma estrada no “eixo sul-sul” para o trânsito de ideias, obras e afetividades.

Lembro que quando trabalhei com Paulo Cesar Saraceni, no finado Festival de Curtas de Paraty, em 2002, ele defendia, ao invés de mesas de debates sobre os filmes, “encontros afetivos nos bares”. A ideia é bonita e se encaixa nesse discurso. O que nos unirá não será o passado colonizado, católico e escravocrata. O que nos unirá será a afetividade.

Venho questionando a pertinência da expressão “América Latina”. Para mim, é um termo obsoleto, anacrônico e datado. Para nos repensarmos, temos que recriar esse conceito, que foi cravado no período histórico do pós-guerra, nos meandros da Guerra Fria. Período que exigia uma separação geo-política e semântica entre as duas Américas: a pobre e subdesenvolvida, e a do norte, rica, dona de todos os quintais. Ainda fará sentido falar hoje de "América Latina" quando 40 milhões de latinos estão nos Estados Unidos? Quando a cultura produzida pelos Estados Unidos está em todos os lares dos 26 países do continente, através da música, dos filmes, da internet, dos video-games? A cultura latino-americana hoje não é mais popular e mestiça. É pop e mixada. Hoje a América Latina é tão pop quanto a periferia descrita por Faustini. Ela também criou sua estética própria, também se expressa de maneira original, recriando linguagens, se conectando com o mundo, falando de si com encanto e sedução.

Por isso, não faz mais sentido esse imenso guarda-chuva retrô chamado “América Latina”. Temos que nos rebatizar para inaugurar esse século frenético, nos reposicionando dentro e fora desse pedaço de chão. Cada vez encontro mais pessoas com interesse em explorar essa nova cara da América, mas todas se queixam da dificuldade, da escassez e das barreiras na estrada. Isso já é um ótimo sinal, pois pás existem para cavar as barreiras, recriando os fios de través das antigas teias. Só sentimos afeto por aquilo que conhecemos. Isso serve para a periferia de Faustini ou para as longínquas criações chilangas. E a arte – e hoje, as indústrias criativas – são sem dúvida o melhor passaporte para aproximar os mundos e se deixar seduzir por aquilo que você nem imaginava que existia. Essa é a graça de poder viver num mundo globalizado.

domingo, 11 de outubro de 2009

Mundo Contemporâneo

Ando estudando e pensando sobre a forma que os projetos culturais devem ter para que se tornem algo interessante e sedutor. O Brasil avançou muito em certas áreas, bem mais do que outros países do continente, com poucas exceções. Essa semana discuti muito sobre do que se trata quando falamos no interesse em se divulgar valores e ideias da América Latina. Para quê? Para quem? Estou convencida de que deve haver uma ruptura entre o propósito didático-ideológico de certas iniciativas e o novo projeto que quero construir. Não me interessa celebrar o passado e sim olhar para o futuro. Mirar estrategicamente para além das tradições. 

Hoje fui visitar o projeto Brasil Rural Contemporâneo. Fiquei bastante (bem) impressionada com o que vi: um local enorme, muito bem organizado e executado, com todos os cantos do país representados, sob uma perspectiva de negócio: um bando de pequenos produtores rurais expondo e vendendo seus produtos. A concorrência era grande: uma variedade de suco de uva, mel, salames e queijos que poucas vezes vi junta. Os preços eram ótimos porque eram diretos para o produtor, sem intermediários. As coisas eram lindas e deliciosas - porque é claro que se faz muita coisa boa por aí.

Essa mudança de paradigma no modelo do evento me parece muito positiva. Basta de celebrações inócuas. O importante é que o discurso se transforme em atos sensatos, úteis, prósperos e proveitosos para ambas as partes. 

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Disneylândia everywhere

Não tenho o hábito de acompanhar a cobertura das semanas de moda que acontecem essa época do ano no Rio e em SP. Mas essa semana tive a sorte de ligar a TV justamente quando passava o desfile do Ronaldo Fraga, no SPFW, comentado pelo próprio estilista. Fiquei hipnotizada frente à suas proposta: denominado "A Disneylândia de Ronaldo Fraga", o desfile apresentava uma América remixada, mistura de Mickey Mouse com Frida Kahlo que, confesso, me deixou surpresa.

Normalmente atribuímos à América Latina elementos folclóricos - a  tradição indígena andina, a festa dos mortos, o milho, a lhama, a flautinha. Fraga misturou isso com Maga Patalógica - o que faz todo sentido pois não se pode pensar nessas terras sem considerar o enorme papel da mass midia gringa da segunda metade do século XX pra cá - e recriou uma nova leitura estética desses cantos, na melhor tradição antropofágica - e ao som delicioso de Lila Downs. 

Entrei no simpático blogue do Fraga e encontrei esse belo texto de apresentação do desfile, que pode ser lido na íntegra aqui:

Ainda bem que o velho mundo ficou no século passado… já estava cansado de viver num país que, ofegantemente, tentava chegar à Europa nadando e sem bússola. Agora, olho para os vizinhos de uma América Latina que não conheço. Uma América que, definitivamente, não é a dos generais e ditadores “cucarachas” perdidos no tempo. Que não é a do visto negado para os Estados Unidos, ou que paga caro a conta da corrupção.

É sem dúvida um convite para sacudir a poeira dando a volta por cima e renovarmos nossos olhares sobre os vizinhos, sem que isso tenha uma conotação ideológica. Chega daquela América embolorada e cheirando a mofo. Em pesquisa do Latinobarômetro, publicada hoje pela Folha, mostra que 73% dos latino-americano são favoráveis a uma integração econômica e apenas 60% apoia a integração política. Segundo a socióloga Marta Lagos, diretora do instituto, a razão principal seria a bipolarização do continente conduzida por Hugo Chávez, que acabou arranhando os esboços nessa direção (merci Chávez!). 

Mesmo de forma não declarada e panfletária, a cultura serve a esse propósito. O desfile de Ronaldo Fraga, a abertura do restaurante La Mar em SP, o show da Bethânia com a Omara ano passado... tudo isso são laços de novo tipo que se estabelecem com esse vizinho "que mal cumprimentamos no encontro diário no elevador", no dizer do próprio Fraga. E conclui que a "troca de xícaras de açúcar" com esses vizinhos que não falam a mesma língua pode se dar sim pelo lado estético, gráfico, musical contemporâneo.

Como já tinha feito o fotógrafo argentino Marcos López em seu ótimo livro Pop Latino, Fraga mistura referências pop ao mundo das tradições. Afinal em terras como as nossas, filhas de processos de colonização, falar em cultura pura ou em tradição de raiz é quase risível. Somos por definição uma mistureba danada, que inclui sim os Estados Unidos. Chega de nos ver como água e azeite. Não somos nós contra eles. Nós estamos neles e eles estão em nós. E é o resultado disso que há de ser viável economicamente.


sábado, 23 de maio de 2009

Solo pasión?

Fiquei pensando no post que li outro dia no blog La Latina sobre o filme americano que será filmado em Cartagena, tendo Keanu Reeves no elenco. O filme se chamará Cartagena e o tema será - adivinhem? - o narcotráfico.

A iniciativa gerou imenso desconforto entre as autoridades colombianas, sobretudo por estigmatizar um dos principais centros turísticos do país e patrimônio da humanidade. Porém, os argumentos utilizados pelos próprios colombianos contra a iniciativa são ingênuos e ufanistas, como pode-se ler no artigo publicado no jornal El Tiempo

Lembro quando ainda trabalhava no Cinesul (há quase uma década!) e tivemos a exibição de um filme colombiano proibida pelo Consulado Geral da Colômbia no Rio por considerar que o filme "dañaba la imagen del país". Dez anos depois, pelo visto, o discurso continua o mesmo. 

No entanto,  nesse espaço de tempo houve uma forte e eficiente campanha para firmar a marca-país Colômbia com o slogan Colombia es pasión, numa tentativa 
de desassociar a imagem do país da violência e do  narcotráfico. A campanha custou 3 milhões de dólares sendo que 95% do investimento proveio da iniciativa privada. Através dos estádios de futebol e de astros como Juanes a marca foi amplamente difundida pela população. Em várias conversas com colombianos já me deparei com a declamação do slogan, revertido por um estranho orgulho pátrio. Durante a Bienal Iberoamericana de Design, que participei ano passado em Madrid, a mesa mais estranha foi justamente a da Colômbia: o representante desse país gastou mais da metade do tempo que dispunha lendo uma interminável lista de espécies da fauna colombiana, apenas para provar a sua diversidade e "pasión". Beirava o ridículo e virou motivo de chacota entre os demais participantes. 

A impressão que eu tenho - tomara que eu esteja enganada - é que as "feridas de guerra" são tão profundas neste país que há uma necessidade premente de uma ação afirmativa, de um posicionamento na defensiva, de uma espécie de permanente auto-ajuda patriótica.

É uma pena pois soa falso. E a Colômbia não precisa disso. O desenvolvimento urbano e cultural da última década, aliado a um poderoso combate à violência nos principais centros urbanos já são motivo de sobra para se posicionar com orgulho no cenário internacional. Não precisa de listas de pássaros nem de boicote a filmes americanos. A imagem do país não vai mudar só com flores e café. Cabe aos próprios colombianos expurgarem essas questões, com senso de humor, um pouco de auto-crítica e menos didatismo. Quem sabe devorando essas produções maniqueistas norte-americanas e regurgitando-as sob outras formas, o país tenha mais jogo de cintura no cenário internacional. Viva a boa e velha antropofagia!

quarta-feira, 20 de maio de 2009

80 filmes

Depois de tanto tempo ausente, volto para postar um blogue paralelo que montei há pouco tempo, enquanto preparava uma palestra que dei sobre cinema latino para o pessoal da Casa Daros, no Rio, chamado América Latina através do cinema. O encontro foi ótimo e a ideia era dar um panorama geral do que se vem fazendo na seara do cinema latino.

Minha seleção de mais de 80 títulos, todos com links para trechos ou trailers no YouTube é variadíssima e reflete bem a diversidade desse cinema, provando o quão é difícil colocar qualquer tipo de rótulo.

O primeiro critério é que fossem filmes recentes - todos são de 2000 para cá, menos o último da lista, que foi onde tudo começou na minha vida e que por essa razão justificava sua presença: La Vida es Silbar, do meu pai cubano Fernando Pérez.  

Depois, dividi os filmes em alguns blocos temáticos, nada rígidos, mas que tentam direcionar algumas tendências desse novo cinema. As classificações foram bastante subjetivas, assim como a seleção, que na verdade é parte da minha memória afetiva de 7 anos selecionando filmes pro Festival do Rio.

Ali temos desde obras assumidamente comerciais, como Campanella e Iñarritu a filmes deliciosamente experimentais como La Antena, passando pelos trash-cult-movies chilenos do Nicolas Lopez, pelos melosos filmes chicanos, por comédias hilárias e por jovens diretores que não deixam nada a dever a ninguém, como a já citada Claudia Llosa, vencedora do Urso de Ouro, ou o chileno Matias Bize com seus simpáticos filmes sobre casais, ou ainda o boliviano de Cochabamba Martin Boulocq (aliás, sobre seu filme, Eugenio Figueroa, da Daros, fez um comentário interessante, de como a postura dos corpos do personagem deixa transparecer um certo estado de espírito do quase inexistente cinema boliviano).

A seleção também inclui a nata do atual cinema do continente (e aqui não me atrevo a classificar como "cinema latino-americano" pois são filmes que vão muito além desse rótulo), que na minha opinião é formada pelos grandes Carlos Reygadas, Pablo Trapero e Lucrecia Martel. Se Juan Pablo Rebella fosse vivo, estaria sem dúvida nessa lista.  Albertina Carri, depois do impactante La Rabia também é forte candidata. 

E tantos outros. Minha seleção não inclui apenas os filmes aclamados por público e crítica, nem somente os premiados em festivais. Nem inclui apenas os filmes que eu particularmente gosto. Não gosto de alguns, mas decidi inclui-los pois acredito que são filmes que de alguma forma apontam para um entendimento - e desfrute - do que poderia ser a América Latina. Alguns por endossá-la em seu discurso. Outros por negá-la. Uns por sofisticados, outros por toscos e mal-acabados. Uns porque nem pensam nisso! Outros que vivem disso. Uns por ousados. Outros por líricos. Há de tudo um pouco. Que disfruten!

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Nós da Comunicação

O portal Nós da Comunicação publicou hoje uma entrevista sobre o América Aracnídea.
É só clicar aqui!

domingo, 15 de fevereiro de 2009

La Teta Exultante!!!

Este carnaval terei uma razão a mais para comemorar: acabo de saber que o Urso de Ouro deste ano foi para o filme La Teta Asustada, do qual já havia falado aqui antes. Estou exultante de felicidade não apenas pelo fato da diretora Claudia Llosa ser uma amiga muito querida, com quem sinto uma conexão e sintonia de pensamento muito grande, mas sobretudo por atribuir a ela, como já foi dito aqui, um papel chave na atual cultura latino-americana. Seu jeito peculiar de contar histórias reinventa dramas e tradições, brilhos e saudades. É a nova américa se desenhando talvez sem se dar conta disso.
E por trás do talento de Claudia, deixo também meu reconhecimento ao produtor do filme, José María Morales, da Wanda Films. Morales se converteu nos últimos anos em uma espécie de midas do cinema latino, co-produzindo muitos dos grandes filmes das safras recentes, como o Abraço Partido, do argentino Daniel Burman, também premiado em Berlim. 
Ao lado de Central do Brasil (Urso de Ouro em 1998) e de Tropa de Elite (Urso de Ouro em 2008), La Teta Asustada compõe a tríade de premiação para latino-americanos em toda a história da Berlinale. 
Mas o mais emocionante de tudo foi ver a bela atriz Magaly Soler fazendo seu discurso de agradecimento em quéchua, em Berlim. É a própria personificação de tudo o que viemos discutindo aqui, a síntese do regional com o internacional, da tradição com a inovação. É sem dúvida um momento histórico de grande beleza e merecimento.
Razão de sobra para se comemorar em grande estilo!


domingo, 8 de fevereiro de 2009

Ser ou não ser...

Nos últimos dias me deparei com duas declarações parecidas em contextos diversos que complementam algumas questões que venho levantando e gostaria de tratar aqui.

A primeira foi do autor Junot Díaz, dominicano-americano que ganhou o prêmio Pulitzer 2008 com o romance "A vida breve e bizarra de Oscar Wao" que a Editora Record lançará em breve. Em entrevista ao Estadão,  Díaz levanta uma lebre cada vez mais recorrente nos tempos atuais que é a da condição do imigrante "latino", ou "hispano", a minoria mais numerosa nas terras do Tio Sam. Segundo ele, os brasileiros não se reconhecem nessa categoria e "fazem tudo para deixar claro que não são latinos", fato que não me espanta. O mais interessante da análise dele é que mostra como essa atitude acaba sendo prejudicial para a enorme massa de imigrantes brasileiros: "Num momento de vulnerabilidade como agora, quando a economia despencou, estão deportando brasileiros a rodo. Eles não construíram coalizões, estão isolados. Este solipsismo da natureza da identidade brasileira no contexto dos Estados Unidos, onde o que dá certo é construir redes, coletivos de grupos, voltou-se contra os brasileiros. Você vê isso em Massachusetts, a comunidade brasileira está sendo visada e não tem aliados."

É interessante  o modo que ele coloca a questão das redes (teias) como elemento não só de sobrevivência como de pressão de uma comunidade imensa em meio a uma sociedade hostil. E é também interessante notar como o resto dos países "hispânicos" se confundem numa generalização absoluta, tornando-se todos iguais. Anos atrás, no ótimo filme "Un día sin mexicanos", de Sergio Arau, que simula um dia em que todos os latinos somem da Califórnia e o caos se instala, havia uma cena em que a empregada hondurenha é tratada como mexicana e o patrão, impaciente, afirma: "é tudo a mesma coisa". Sabemos que do lado de lá é mesmo. Há uma aparente união entre os "chicanos" que os tornam quase um objeto comum não-identificado. Daí os estereótipos e a pecha pejorativa da comunidade, que me leva à outra citação que li hoje do ator cubano-americano Andy García. Diz ele"Todo el mundo sabe que amo mi cultura y siempre he dicho que soy cubano, pero yo no me considero un actor latino, ni quiero que me consideren ni me clasifiquen de esa manera. (...) A Dustin Hoffman no le dicen: es un gran actor judío americano. No creo que la herencia tenga nada que ver con la actuación, en realidad todos somos actores."

O grande desafio do nosso tempo é repensar essa imagem do latino, hispânico, chicano, cucaracha, sudaca, ou seja lá que nome for. Acredito no papel dos atores culturais como agentes transformadores, capazes de apresentar outros fios da teia. Afinal, muito dessa imagem é reafirmada por cada um de nós, às vezes até de maneira inconsciente. Mais uma vez é Díaz que entra com uma boa colocação:  "seja o México ou Santo Domingo ou o Brasil, quase sempre exportamos expectativas pré-empacotadas, turísticas. Então a nossa 'intelligentsia', nossos artistas, nossos excêntricos, as pessoas que são cerebrais e interessantes não fazem parte do pacote exportado mas elas existem e são muitas."

Esperemos, pois o livro de Díaz por aqui para nos deparar com algo a mais dessa fértil e variada e desconhecida 'intelligentsia'.
 

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Na Rádio

Amanhã às 10h darei uma entrevista para a Rádio Eldorado AM, de São Paulo (700Hz). Será no programa Panorama Eldorado, com a apresentadora Vanessa di Sevo. Para os cariocas, a rádio também pega via internet, neste site.

PS: A entrevista encontra-se disponível na íntegra aqui!


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Resenha 2

Esse sábado saiu na Ilustrada uma resenha do Oscar Pilagallo, que reproduzo a seguir:

LIVROS

Crítica/"América Aracnídea - Teias Culturais Interamericanas"
Análise valoriza obra sobre jornal que tentou unir Brasil e vizinhos
Historiadora aborda "Pensamento da América", publicado durante ditadura de Vargas
OSCAR PILAGALL
O
ESPECIAL PARA A FOLHA

A referência cultural da elite brasileira é oriunda da Europa, até a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e, desde então, dos Estados Unidos. Os vizinhos latino-americanos sempre estiveram culturalmente distantes. Ou quase sempre. "América Aracnídea", da historiadora Ana Luiza Beraba, é sobre esse "quase". Durante sete anos, entre 1941 e 1948, o governo brasileiro investiu na aproximação não só com os latinos, mas com os americanos de um modo geral.
O principal instrumento dessa política foi o suplemento "Pensamento da América", publicado no jornal "A Manhã", órgão da ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas. A metáfora da aracnídea remete às teias culturais entre os países do continente, que o jornal ajudou a tecer, valendo-se do trabalho de intelectuais modernistas ligados à diplomacia do governo Vargas. Para um projeto patrocinado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), o suplemento até que era bem arejado. Um dos poetas mais traduzidos em suas páginas era o americano Walt Whitman, que no século 19 louvava a democracia dos Estados Unidos. Outro assíduo frequentador era o chileno Pablo Neruda, cujo comunismo também não agradava ao Estado Novo.
Para Ana Luiza Beraba, "o Brasil entrou no jogo do pan-americanismo não por pressão norte-americana, mas sim porque era a chance de se afirmar como potência no continente". Segundo ela, o Brasil conseguiu, com astúcia, inverter os interesses americanos em seu próprio favor. Não foi tarefa fácil. A iniciativa coincidiu com a americanização do Brasil, sobretudo a partir da adesão de Vargas aos Aliados, pondo fim às ambiguidades que por vezes o aproximavam do nazismo. Além disso, como nota a historiadora, dentro do próprio governo havia resistência entre os ideólogos mais nacionalistas.
O suplemento durou enquanto houve interesse político. Com a polarização ideológica entre capitalismo e comunismo a partir do final da década de 40, o pan-americanismo perdeu relevância. "Pensamento da América" foi uma vítima da Guerra Fria. A amarração das análises valoriza o material importante que estava esquecido nos arquivos. A imbricação entre arte, política e diplomacia é explorada num texto em que o rigor acadêmico não prejudica a fluência, a ponto de a autora, sem resistir ao jogo de palavras, incomum em obras do gênero, afirmar que, sob Vargas, o Itamaraty estava literalmente nas mãos de um aracnídeo: Oswaldo Aranha. O livro tem ainda um valor extrínseco: a oportunidade. Ele surge num momento em que o governo brasileiro se esforça em estreitar laços com outros países do continente, também com o objetivo de exercer liderança regional. São iniciativas que, como o Mercosul, têm no "Pensamento da América" um embrião remoto.
OSCAR PILAGALLO é jornalista e autor, entre outros livros, de "Folha Explica Roberto Carlos" e "A História do Brasil no Século 20" (em cinco volumes), todos pela Publifolha.

AMÉRICA ARACNÍDEA -TEIAS CULTURAIS INTERAMERICANAS
Autora:
Ana Luiza Beraba
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 39 (224 págs)
Avaliação: bom
 

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

La Teta Asustada

Me encheu de alegria a notícia de que o novo filme da cineasta peruana Claudia Llosa está selecionado para a competição oficial de Berlim, que começa no próximo dia 5. Com o inusitado título de La Teta Asustada, o filme se encontra mais uma vez na fronteira entre a realidade e a ficção, como ela já fizera com seu filme anterior, Madeinusa.

O que me encanta na obra de Claudia que, aliás, foi a pessoa que me apresentou ao conceito de "cultura chicha", é a maneira como lida com a tradição, uma tradição recriada, inventada, ficcional e a relaciona com questões contemporâneas bastante complexas. Em Madeinusa, por exemplo, a história se passa num vilarejo andino bastante isolado que tem como tradição uma comemoração muito peculiar da Semana Santa: se Jesus morreu na cruz na sexta-feira e ressuscitou no domingo, então entre sexta e domingo Deus está morto, e portanto o pecado não existe. Diante dessa lógica evidente, todo o povoado se prepara para fazer o proibido.

Acompanhei Claudia quando veio apresentar o filme no Festival do Rio 2006 e a primeira pergunta que pulula ao fim da sessão é sempre a mesma: "isso é verdade?". O jogo que ela consegue armar tão bem nos faz questionar uma série de paradigmas, no melhor estilo "a invenção das tradições", de Hobsbawn. 

Nesse último filme, o pano de fundo é o Peru do Sendero Luminoso, assustado pela violência cotidiana do terrorismo. A própria Claudia explica:  
“La teta asustada no es una creencia, es una enfermedad, una antigua enfermedad. Se contagia a través de la leche materna de las mujeres que fueron violadas durante la gestación y la lactancia. Sus hijos se infectarán de manera irremediable de ese silencioso terror. Fausta (Magaly Solier) lo tiene. Ella sufre de un miedo atávico que la invade por completo. Y más, guarda un secreto que no quiere ni puede revelar. Pero debe cumplir una promesa: llevar a su madre a su pueblo natal. Y para hacerlo debe encontrar la salida del laberinto que está dentro y fuera de ella”

Essa reinvenção das tradições faz hoje de Claudia Llosa uma figura chave nesse processo de resignificação do continente. Tomara que saia de Berlim com um merecido prêmio.

Resenha

E teve ainda uma resenha interessante do historiador paulista Antonio Pedro Tota, que foi uma referência teórica para meu trabalho, sobretudo com o ótimo livro Imperialismo Sedutor. Aqui ele situa o movimento pan-americanista de uma forma bem completa, citando inclusive o movimento All Mexico. 


ESTADO DE SÃO PAULO

CADERNO2 

25/01/2009 


 Intelectualidade a serviço do espírito pan-americanista 

 Movimento se fortaleceu quando EUA se sentiram ameaçados pelos nazistas

 

Antonio Pedro Tota 

ESPECIAL PARA O ESTADO


É estimulante para um velho professor de história saber que jovens pesquisadores podem produzir algo novo de temas aparentemente batidos.  A carioca Ana Luiza Beraba, em América Aracnídea, trabalha com o desconhecido suplemento Pensamento da América do jornal A Manhã, órgão do Estado Novo.  O suplemento foi a fórmula da intelligentsia brasileira para juntar os fios das teias das Américas.  Ana Luiza fez isso sem cair na fácil armadilha do nazismo/fascismo/totalitarismo para classificar o governo Vargas de 1937 a 1945. 

Muitos optaram apressadamente pela fórmula acima depois de tomar conhecimento do discurso de Vargas de 1940, quando ele deu a entender que o futuro pertencia aos povos vigorosos aptos à vida....  O discurso de Getúlio parece ter sido interpretado como um manifesto nazi-fascista.  E reciclado em 1944, por K.  Loewestein num livro chamado Brazil Under Vargas e usado como padrão, até hoje, para entender (ou não entender) o Estado Novo.  Loewestein empregou o conceito Gleischschautung para identificar a política do DIP.  Nada mais fora do lugar.  Significa nivelamento planejamento, organização.  Impossível no Brasil de Vargas.  Impossível essa hegemonia na América Latina, diria Richard Morse. Americanismo, pan-americanismo, relações entre intelectuais e relações culturais entre as Américas.  Difícil não cair nos jargões ideologizados.  Ana safou-se, mas teve de usar o politicamente correto estadunidense (por sorte aspeado) para designar os nascidos nos EUA. 

Logo depois da independência, os pais da pátria dos Estados Unidos tinham dúvidas.  Eram um país ou 13 países? Estados Unidos da América.  Sabemos que a palavra América foi apropriada pelos EUA para designar um país sem nome. América veio a calhar.  Os vizinhos continentais, lutando contra a Espanha ou Portugal e depois entre si, não prestaram atenção e deixaram que o nome virasse marca registrada do irmão maior. Por isso, talvez, os EUA pensaram numa impossível união das Américas num pan (totalidade).  Isso estava na cabeça de Simon Bolívar em 1826, no chamado Congresso do Panamá.  Só para nações hispano-americanas.  Não deu certo.  Bolívar, perto da morte, achava que a América Latina era um caos primevo.  A união das Américas foi um sonho pouco atraente. 

Essa cooperação interamericana seria impossível na maior parte do século 19.  Na época, os americanos sabiam que não tinham muito a ver com o restante da América.  A verdadeira América falava inglês, era branca e protestante.  Podia ter imperfeições.  Um irlandês católico ou um alemão católico.  Os africanos escravos não entravam na contabilidade racista civilizatória. Os “estadunidenses começaram a olhar com cobiça para o Sul quando da guerra com o México no fim dos anos 1840.  Vencido o México, cresceu o movimento conhecido com All Mexico.  Por que não anexar todo o México em vez de ficar só com o Texas, Novo México, Nevada, Colorado (parte) e Califórnia?  A grita foi geral.  Com o território, diziam os oponentes ao plano expansionista, viria gente pouco confiável.  Mestiços, espanhóis, católicos, corruptos, lúbricos.  Um alto funcionário americano, ou estadunidense, resumiu de forma mais calvinista a imagem que se fazia do México e, por extensão, da América Latina: ...enquanto em nossas cidades e municípios você ouve o zumbido ativo do trabalho incessante e o assobio estridente da máquina a vapor, lá você não ouve nada além do tambor e pífano; enquanto nós fazíamos ferrovias, eles faziam revoluções.  O movimento Todo México foi esquecido. Em 1890, os EUA insistiram na aproximação amigável e promoveram uma grande reunião em Washington com a participação da maioria dos países latino-americanos.  Nasceu a Pan-American Union/União Pan-Americana/Union Pan-Americana com todas as publicações em três línguas.  A guerra Hispano-Americana de 1898 arrefeceu os ânimos.  

O encontro da União Pan-Americana, no México, em 1901 foi fria e antiamericana, ou melhor, anti-ianque. 

Nos anos que precederam a 2ª Guerra, o pan-americanismo reapareceu com mais força.  

O continente sentia-se ameaçado pelo crescente germanismo renascido no nazismo da Nova Alemanha.  O pan-americanismo ficou mais forte depois de dezembro de 1941, quando os japoneses arrasaram Pearl Harbor.  Poucos meses depois, Orson Welles estava no Brasil para soldar a amizade com as outras Américas

Em 14 de abril de 1942, Orson fez um programa de rádio no Rio de Janeiro transmitido para os EUA.  Era o Pan-American Day, não muito lembrado em nosso calendário oficial.  O entrevistado foi Oswaldo Aranha, ministro de Relações Exteriores de Vargas.  Orson apresentou o gaúcho comparando-o ao valente caubói do Texas.  E Aranha falou em bom inglês, com sotaque, enaltecendo a amizade das Américas.  Quatro dias depois, Orson reforçou o pan-americanismo: comandou um show no Cassino da Urca para comemorar o aniversário de Vargas.  Era o Dia do Presidente, uma versão do Presidents Day transportado para cá pelo Office of the Coordinator of Inter American Affairs, de Nelson Rockefeller. 

Terminada a guerra e deposto Vargas, o Pan-American Day sumiu.  O aniversário de Vargas ficou em família.  E o pan-americanismo só sobreviveu no slogan da desaparecida Pan-American Airways  ligando as Américas.  

 

Antonio Pedro Tota, historiador e professor da 

PUC-SP, é autor de O Imperialismo Sedutor

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Repercussão

Ontei saiu uma matéria bem legal no caderno Cultura do Estadão sobre o América Aracnídea. Como muita gente no Rio não lê o Estado, reproduzo aqui a íntegra da matéria. Os que tiverem Facebook, podem ver a imagem clicando aqui:

ESTADO DE SÃO PAULO

CADERNO 2 

25/01/2009 

BRASIL 

 

E UM DIA O BRASIL QUIS SE TORNAR UMA ARANHA

América Aracnídea, de Ana Luiza Beraba, aborda dificuldades de unir o continente

por Francisco Quinteiro Pires

 

ESTADO BRASILEIRO, NOS 1940, APOSTOU NO PAN-AMERICANISMO PARA VIRAR POTÊNCIA 

 

Quando certa manhã Getúlio Vargas acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.  GV transformara-se numa aranha.  Não é que de repente ele fora incluído num romance à la Franz Kafka.  Essa metamorfose, nada ficcional, está registrada na História.  Para ser mais preciso, Getúlio Vargas era o centro nervoso de uma aranha chamada Brasil que, dividindo espaço na mesma teia com outra 

aranha, os EUA, tecia os fios culturais do pan-americanismo. 

Os sonhos intranquilos deviam-se à 2ª Guerra Mundial (1939-1945).  Depois de certo período de ambiguidade política, o governo brasileiro decidiu embarcar de vez no barco dos Aliados na luta contra o Eixo.  Se durante a 2ª Guerra se iniciou o processo de americanização do Brasil, essa investida político-cultural não se deu sozinha.  A fim de ser uma potência regional, o Brasil, a seu modo, contra-atacou. O ministro das Relações Exteriores Oswaldo Aranha, contrário aos nazistas e fortalecido no governo no fim dos anos 1930, jogava as suas teias diplomáticas.  O Brasil teve uma atitude internacionalista com o continente americano que em nada afetou o conhecido nacionalismo do Estado Novo (1937-1945).  Valia a ideia da autodeterminação dos povos no jogo com os outros países, sobretudo os EUA, promotores da Política da Boa Vizinhança. Daí a pertinência da metáfora de que Brasil e EUA seriam as duas âncoras (aranhas) do continente, usada por Cassiano Ricardo, dirigente do A Manhã, 

jornal oficial do Estado Novo criado em 1941 e extinto em 1948.  Nele circulou o Pensamento da América, suplemento dominical de cultura que promoveu a integração intelectual dos países americanos.  Suas páginas abrigaram o espírito pan-americano, que não anulava a diversidade nacional.  O modernista Cassiano Ricardo, autor de Martim Cererê, dizia que 

há vinte e uma formas de ser americano, e não uma apenas

Formavam a América as seguintes repúblicas independentes: Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Equador,Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador, Guatemala, México, Estados Unidos, Canadá, Cuba e República Dominicana.  Haiti, vez por outra, é citado.  Não se distinguia América Latina de América Anglo-Saxônica. 

A circulação de Pensamento da América, fato pouco conhecido, é o tema de América Aracnídea  Teias Culturais Interamericanas (Civilização Brasileira, 224 págs., R$ 39), da historiadora Ana Luiza Beraba, de 29 anos.  Pensamento da América, além de falar da relação do Brasil com outros povos, revela a condução ambígua da política por Vargas. Ele era muito sagaz, sabia jogar, como prova a decisão tardia entre apoiar EUA ou Alemanha, diz.  O então presidente mostrava sua essência enigmática, em razão da qual pode ser 

chamado de pai dos pobres e mãe dos ricos. 

Criado pelo diplomata Rui Ribeiro Couto, Pensamento da América tinha relações estreitas com o Itamaraty e os intelectuais modernistas. O motor do suplemento era diplomático e a finalidade, política. Ele estava a serviço da ideologia oficial.  Ana Luiza refuta a incoerência entre o projeto nacionalista de Vargas e o pan-americanismo do suplemento. A questão da 

terra é extremamente importante para a publicação, acreditava-se que para defender o Brasil era preciso primeiro saber o que não é o Brasil, diz. “A delimitação do território era fundamental, por isso a presença forte da literatura regionalista no suplemento, completa. 

A atuação de modernistas não é casual.  O modernismo tentou redescobrir o País e sua identidade.  O governo escolheu como diretor de redação Cassiano Ricardo, modernista conservador, ícone do grupo Verde-Amarelo.  O regionalismo sintetizou o conceito de brasilidade, pois unia o regional ao nacional, origem do elo entre modernistas e Estado Novo. 

Ana Luiza afirma que Pensamento da América refazia a imagem do continente para os brasileiros, ao mesmo tempo que o governo os bombardeava com a ideia de um novo país.  As referências não estariam mais na Europa. Ao contrário do que se pode concluir, o discurso varguista era muito coerente, afirma.  

Por isso não deveria causar espécie a comparação de Cassiano Ricardo entre Getúlio Vargas, Simon Bolívar e James Monroe, os mentores do americanismo. Apesar do interesse político, o que estava em pauta, segundo Ana Luiza, era a divulgação dos valores intelectuais dos povos do continente. À semelhança do 3º Reich e dos EUA de Franklin D.  Roosevelt, o Estado varguista valia-se da cultura como arma política  secretando ideias como uma picada de inseto que não arde. 

Pensamento da América teve três fases durante as quais o conteúdo se diversificou.  Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Dante Milano, Gilberto Freyre e Cecília Meireles, entre outros, compunham a redação do A Manhã, de circulação nacional.  Impressiona, segundo Ana Luiza, a modernidade da paginação que privilegiava o material iconográfico, como mapas e fotografias.  Os leitores podiam, por exemplo, apreciar a reprodução dos últimos trabalhos do pintor mexicano Diego Rivera. 

A primeira fase, sob a direção do poeta e diplomata Ribeiro Couto, vai de agosto de 1941 a fevereiro de 1943  Manuel Bandeira assumiu o comando durante 6 meses.  Deu-se um turbilhão de propostas e descobertas.  A segunda  de março de 1943 a novembro de 1945  é a fase da maturidade e da fertilidade.  O conteúdo fica mais plural com Renato Almeida, folclorista e musicólogo.  A ênfase, antes, era dada à literatura.  Música, cinema, artes plásticas, geografia, urbanismo encontraram guarida.  A última é a fase da agonia, do começo de 1946 a fevereiro de 1948.  Temas gerais são contemplados e o nome do diretor desaparece do expediente. 

Durante esses 7 anos de existência, vários artistas americanos (não confundir, neste caso, americano com norte-americano) publicaram textos, entre eles Gabriela Mistral, Walt Whitman, Alfonso Reyes, Pablo Neruda, Alfonsina Storni, Jorge Luis Borges, Fernando Ortiz, William Carlos William, Aaron Copland.  O leque de colaboradores brasileiros era abrangente  Oswaldo Goeldi, Murilo Mendes, Brito Broca, Lêdo Ivo, Ascendino Leite, Marques Rebelo, Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto, etc. 

Ana Luiza pesquisou a coleção do suplemento, quase completa e pertencente a Plínio Doyle, na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio.  Sem receber bolsa, ela usou o tempo livre para ler as 1.128 páginas do suplemento.  O trabalho demorou 3 anos.  Detalhe importante: Ana Luiza Beraba foi desaconselhada a fazer a pesquisa.  Diziam-lhe ser irrelevante o contato entre Brasil e as nações vizinhas.  Mas conversas com pessoas do quilate do argentino Néstor 

García Canclini foram incentivadoras.  Depois de virar monografia de graduação da Faculdade de História da UFRJ, o trabalho de Ana Luiza foi ao livro, elogiado pelo uruguaio Eduardo Galeano, autor de As Veias Abertas da América Latina. 

Ana Luiza estudou cinema na EICTV, em Cuba.  Desde 2003 integra a coordenação 

internacional do Festival do Rio.  Está concluindo a pós-graduação em gestão cultural na FGV-Rio.  Nas pesquisas para a pós  entrevistas com 300 espectadores do Festival do Rio de 2007 , ela comprovou mais uma vez o desconhecimento em relação ao continente.  Quando os pesquisados respondem quais são os cineastas latino-americanos que conhecem, citam Walter Salles (em primeiro lugar) e Pedro Almodóvar (em segundo).  Mas Almodóvar é 

espanhol.  E, quando pensam em cinema latino-americano, lembram-se de miséria e violência, sol e carnaval. A cultura dos países vizinhos nos é alheia, o preconceito ainda existe, ela diz. 

Pensamento da América durou mais do que deveria (até 1948), pois ficara sem propósito político após Getúlio Vargas ter saído da Presidência.  Isso revelaria “o prestígio do suplemento.  De 1945 em diante, artigos de interesse geral, sem identidade própria, ganharam espaço.  O fim do projeto confirmou ser necessário o descobrimento real da América, apesar de Cristóvão Colombo ter chegado às ilhas das Caraíbas (Antilhas) em 1492. Não conhecemos nem sabemos lidar com o nosso próprio talento até hoje. Essa 

necessidade soa mais fantástica do que o fato de o Brasil ter se transformado, um dia, numa aranha.


Quem escreveu no Pensamento da América

 

CASSIANO RICARDO: Aparecendo, portanto, num instante ímpar de nossa história  quando corpo e a alma do autêntico Brasil emergem de um processo revolucionário que nos restituiu os veios mais secretos de nossa originalidade como povo e como Estado, o objetivo principal de A Manhã é trabalhar por esta obra de confraternização brasileira e espelhar os fatos deste instante emotivo e criador.  O seu rumo está, assim, definido: ela pretende ser o pensamento brasileiro em função dos nossos ideais de nacionalidade. (Texto do escritor modernista sobre a linha editorial do 

suplemento, de agosto de 1941)

RAUL BOPP: É a supremacia técnica da América que vai ditar a resposta.  Ela retomou ritmos de produção tirânica.  O gênio de aço acendeu as fornalhas.  Cresceram as fábricas como monstros achatados, mastigando noite e dia fatias de ferro (...) É a marcha das máquinas a marcha da vitória.  Chegaremos, certamente, um dia, por highways, de Los Angeles ao Chile, Rio de Janeiro ou Buenos Aires.  Mas os autos rodarão em pneumáticos de borracha da Amazônia, onde ela é nativa  seja de procedência peruana, venezuelana, boliviana ou brasileira –, e não mais das Índias de além-Pacífico.  Com o desenvolvimento 

da aviação veremos, em futuro próximo, esquadrilhas do ar riscando o céu no afã de reunir distâncias, vencendo a territorialidade e o isolamento.  Por conseguinte, farão de melhor modo a aproximação dos povos, em uma solidariedade e equilíbrio de interesses. (Texto do escritor modernista sobre o espírito progressista do pan-americanismo, de junho de 1945)

RENATO ALMEIDA: (Rui Ribeiro Couto) é um cavaleiro da cooperação intelectual.  Por toda parte onde o tem levado o destino andejo de diplomata, é sempre um elemento fecundo de compreensão e consegue estabelecer logo contatos espirituais, que desenvolve, tanto para nos tornar conhecidos como para nos fazer conhecer as terras por onde anda e as gentes que o acolhem.” (Texto do folclorista quando sucedeu a Rui Ribeiro Couto na direção do 

suplemento, de abril de 1943)

GABRIELA MISTRAL: Árvore absurda, partida em duas frondes que, separadas no tronco por somente cinco polegadas, se repudiam e dividem no alto por um rasgão e um vazio de metros.  O tronco é um, a seiva é uma, e a espécie e o gênero também, mas a árvore teve o louco humor de não ver as duas frondes.  De ramo a ramo, não corre nenhuma palpitação emocional comum, e sua única raiz parece um mito. (Texto da poeta chilena sobre o desconhecimento mútuo dos países americanos, de setembro de 1945) 

CECÍLIA MEIRELES: Entre marquesa empoada e clown lírico  mal a pude ver num momento movediço de hotel.  Tinha nos olhos e no riso um fulgor igual: a ironia, essa indulgência dos tristes; a poesia, essa tristeza dos bons.  Uma prematura cabeleira toda de lua, que fazia Gabriela Mistral dizer-lhe, como a um bichinho meigo: ratinho branco... Um dia, em 1938, o Uruguai convidou essas duas altas vozes  a argentina e a chilena  a se unirem à de sua Juana de Ibarbourou, para juntas explicarem o mistério de seu lirismo.  Foi 

uma festa inesquecível.  (... ) Estava necessitada e cansada.  Ponho-me a reler seus versos: tão desejosos de encontro, de repercussão.  Nascera para o mais triste e mais irresistível dos verbos: dar-se.  Que é um verbo curto, irregular, e só ironicamente reflexivo. (Texto da escritora carioca sobre o suicídio,aos 46 anos, da poeta argentina Alfonsina Storni, de fevereiro de 1948)